sexta-feira, outubro 08, 2010


Dez maneiras de falar sobre Don Quixote

I
O livro já começa fazendo uma interpelação direta à sua audiência, o “Desocupado lector,” que pode querer que este “filho” fosse mais bonito, galante, e discreto. Tal, diz a voz no “Prólogo,” não seria possível, porque o gênio seco do autor só poderia dar à luz um ser semelhante ao autor. Desde que foi publicado, este livro tem feito exatamente isto: interpelar que o lê, entrar em cumplicidade com a pessoa que se dispõe a passar as muitas horas necessárias para acompanhar as aventuras e desventuras do cavaleiro que, a uma certa altura do romance, é chamado por seu escudeiro, “O Cavaleiro da Triste Figura,” porque se encontra todo machucado, a roupa rasgada, mas que ainda persiste em seguir seus sonhos. Tal é a história que vem atravessando séculos, às vezes mais popular, às vezes menos, mas sempre o mesmo personagem sonhador que inspira, faz rir, faz pensar, até faz chorar.
Este ano se comemoram os quatrocentos anos de publicação de Don Quixote de la Mancha. Na verdade, o livro foi publicado em 1604 com data de 1605, provavelmente devido a problemas com a impressão. Este foi um golpe de sorte, porque assim podemos comemorar este aniversário do livro em dois anos seguidos. Estas comemorações, de fato, tem sido extensivas, em vários países do mundo. A obra, que de acordo com os estudiosos de literatura, lançou o romance como o conhecemos, já foi traduzida para praticamente todas as línguas do mundo que têm um sistema de escrita. A festa tem tomado várias formas, desde leituras públicas de passagens do romance, a concertos, exposições de arte, peças de teatro, e mostras de filmes.


Em Alcalá de Henares, a cidade natal de Miguel de Cervantes Saavedra, muitas festas, palestras, discussões, estão planejadas para todo o ano. O Museo Casa Natal de Cervantes publicou um Guía em que aparecem fotos da casa, e explicações que tentam esclarecer algumas partes da vida do escritor. Diferentemente da casa natal de outros autores que – por incrível que pareça – têm sido mais queridos do público espanhol (especialmente o poeta Lope de Vega), esta casa foi deixada em ruínas, tratada como coisa sem valor, até que em 1956 o Ministerio de Educación Nacional abriu as portas do edifício, depois de fazer “restaurações” cujo valor atualmente está em questão. De todas formas, depois de outras revisões a estas restaurações, um novo museu for aberto em 2000, e está recebendo a cada ano mais visitantes. Este ano deve receber um número recorde de pessoas que querem ver de perto, ainda que sejam somente as interpretações do ambiente doméstico onde nasceu o autor (Guía, 5)
II
Miguel de Cervantes Saavedra nasceu em 1547, provavelmente no dia 29 de setembro, dia de São Miguel. Foi o quarto filho dos sete filhos do casal Rodrigo de Cervantes e Leonor de Cortinas. Seu avô, Juan de Cervantes, era advogado, e dono da casa. Mais tarde, no fim da vida, Cervantes se descreve como “hidalgo” – fidalgo – o que indica que o avô ou tinha ou presumia ares aristocráticos, e viveu uma vida de opulência. Mas o pai de Miguel, Rodrigo de Cervantes, surdo desde a infância, e o filho mais novo, acabou trabalhando como “maestro zirujano,” ou seja, barbeiro (talvez isto explique a importância da bacia do barbeiro para o “uniforme” de Don Quixote). Os barbeiros, naquele tempo, não só faziam a barba e cortavam o cabelo, mas exerciam uma espécie de medicina popular, aplicando sangrias, ou, como diz um texto do próprio Cervantes, o entremés El juez de los divorcios, o barbeiro é um “hombre que hace ligaduras y cura otras enfermedades, que va a decir de esto a médico a la mitad del justo precio.” Depois de três anos do nascimento de Miguel, a família se muda a Valladolid, e depois a Madrid. A família claramente não tinha estabilidade financeira.
Não se sabe nada da educação do escritor. Tom Lathrop, em sua introdução ao romance, diz que a educação de Cervantes deve ter sido intensa e extensa, feita em escolas e individualmente. O único documento provando que Cervantes freqüentou uma escola indica que ele estudou no Estudio de la Villa de Madrid por seis meses, quando tinha já 20 anos de idade. Seu professor foi o padre humanista Juan López de Hoyos (Lathrop xiv). Nesta ocasião, Cervantes contribuiu quatro poemas a uma elegia que Hoyos publicou em honra da falecida rainha Isabel de Valois.
III
Mesmo pra quem não sabe quase nada de Don Quixote, pelo menos sabe que ele tinha um escudeiro. E quase todos sabem que o escudeiro se chamava Sancho Panza. O que é um escudeiro? O que carrega o escudo? Sim, carrega o escudo e muito mais. No caso de Sancho Panza, ele carregava a comida, os remédios, e, especialmente, aquilo que dava equilíbrio a seu amo sonhador e idealista.
Mas vamos do começo: Sancho Panza era um lavrador na propriedade de um fidalgo de cinqüenta anos, chamado “Quijada”, ou “Quesada,” ou “Quejana,” e foi por este convidado a participar de suas aventuras. Don Quijada era homem madrugador, seco de carnes, e muito aficcionado à leitura de romances de cavalaria, e havia decidido tornar-se cavaleiro andante, para consertar o errado e dar justiça aos injustiçados. Seguindo o modelo dos grandes cavaleiros andantes que ele conhecia dos romances de cavalaria, ele tinha que ter um escudeiro. Sancho Panza aceitou seguir seu amo.


Mas Sancho Panza era o contrário de Don Quixote. Ele era gordo, analfabeto, camponês, e prático. Quando seu amo tinha altos vôos de imaginação, Sancho o trazia de volta à terra. Quando Don Quixote viu exércitos de guerreiros, Sancho viu um rebanho de carneiros. Quando Don Quixote viu gigantes, Sancho viu moinhos. Quando, mais tarde, seu amo adota o nome de Don Quixote, Sancho o apelida de “Cavaleiro da Triste Figura”, porque ele está todo machucado, com a armadura arrebentada. Sancho come em demasia, vomita, tem diarréias, bebe, faz comentários grosseiros. Ele insiste com Don Quixote que sua amada Dulcinéia – que é a aldeã Aldonza Lorenzo – não passa de uma camponesa analfabeta e mal-cheirosa. Ele faz comentários sobre “la limpieza de sangre” de muitos outros personagens, e mantém, sempre que pode, que é “cristão velho,” e não deve ser confundido nem com judeus nem com mouros.
Mas, por outro lado, Sancho é aquele que ajuda Don Quixote em suas empreitadas, por mais fantásticas que sejam. É ele quem cura as feridas, cozinha a comida, leva e traz recados. Também é Sancho, o homem do povo, quem tem muita esperteza do mundo, e muitas vezes resolve os problemas criados pelo sonhador amo. Ele sabe refrões da cultura popular de seu tempo, e governa a “ilha” de Baratária com singular sabedoria. No fim do segundo livro, Sancho se prontifica a mentir para salvar a pele de um “mouro”, assim renegando tudo o que a sociedade espanhola ensinava, e que era, de todas as formas, a sua única “grandeza,” o fato de ser branco, e “cristão velho”, sem mistura de sangue.
IV
Quando Cervantes publicou o primeiro livro de Don Quijote, a licença real dava os direitos ao autor do livro “en todos estos nuestros Reinos de Castilla”.O sucesso foi imediato e, já que Portugal não era mencionado nos direitos autorais, dois livreiros portugueses, Jorge Rodríguez e Pedro Crasbeeck copiaram e piratearam o texto, e fizeram duas publicações em fevereiro e março de 1605. A segunda edição madrilhenha, também de 1065, já incluía Portugal nos direitos autorais. É possível que ninguém imaginava que o livro ia ser o sucesso imediato que foi.
Então, este livro que já começou com esta grande possibilidade de plágio e pirataria, continuou sua vida desta maneira. A última linha do livro publicado em 1605, “Forse altro canterà con miglior plectio” – “Talvez outro cante com melhor ponta” – (aliás uma citação errada de um verso de Orlando Furioso), está na realidade desafiando quem quer que seja a continuar a história com sua própria pluma. No decorrer das últimas páginas deste livro, o narrador de Don Quijote (um narrador que se esquece de coisas, mistura datas, não tem certeza das suas fontes, contrata um tradutor, se confunde com quase tudo) diz que tem notícia que o herói foi em mais uma aventura a Zaragoza. Como Cervantes, ao publicar o primeiro livro, já se encontrava “avançado em idade” (para aquele tempo), e como parecia que ele não ia escrever a continuação das aventuras, Alonso Fernández de Avellaneda tomou o desafio e publicou um livro em 1614, com a continuação das aventuras.
Cervantes não se fez de rogado: no seu “Prólogo al lector” da Segunda Parte del ingenioso Caballero Don Quijote de la Mancha , publicada em 1615, ele já ataca o problema de frente, e menciona a continuação escrita por “aquel que se dicen que se engendró en Tordesillas y nació en Tarragona.” Mais uma vez, Cervantes está interpelando seu leitor diretamente, e dizendo que sabe que ele/ela leu o livro de Avellaneda. Mais adiante, ele insulta a Avellaneda, e diz que ele não sabe a continuação da história de Don Quixote. O próprio personagem, mais tarde, se encontra com a publicação do livro contando suas aventuras falsas.
Desta vez, quando a Segunda Parte termina, depois de narrar a morte do herói rodeado por amigos e familiares, o “prudentísimo” narrador Cide Hamete diz.
¡Tate, tate folloncicos!
De ninguna sea tocada;
Porque esta empresa, buen rey,
Para mí estaba guardada.

Cuidado, cuidado, tolos!
Que ela não seja tocada por ninguém
Porque esta empreitada, bom rei,
Para mim estava guardada.

Que Don Quixote não tenha outras continuações espúrias. Que suas aventuras estejam encerradas em si, para sempre.
V
Quando eu fui morar no Japão, com um contrato para lecionar em uma universidade japonesa por quatro anos, tive que levar em conta a exigüidade dos espaços domésticos naquele país – trocando em miúdos, as casas e apartamentos no Japão são muito pequenos, alguns verdadeiras caixinhas. Tive que fazer uma seleção rigorosa entre o que levar comigo, e o que deixar com amigos, o que colocar nos guarda-móveis. Depois de muito pensar, decidi levar somente quatro livros: um livro de sonetos do Vinícius, um livro de poemas do espanhol Antonio Machado, Grande sertão, veredas, do Guimarães Rosa, e Don Quixote, uma edição contendo a primeira e a segunda parte.
Estes quatro livros, dois em português e dois em espanhol, me ajudaram a manter minha sanidade no Japão, e me lembraram, muitas vezes, de onde eu vim, e a que cultura pertenço.
Ainda acho que, se tivesse que ficar pelo resto da minha vida em uma ilha deserta, levaria os mesmos quatro livros. Talvez uns dois ou três mais, se houver espaço.
VI
Muitos hoje em dia concordam que Don Quixote é um livro que tende a irritar a certos tipos de críticos, que apontam as inúmeras inconsistências, os “erros” de aritmética, a mudança de nomes de personagens (especial caso da mulher de Sancho, chamada às vezes Maria, às vezes Sancha), confusões na continuação da trama, inconsistências, etc.
Em 1830, por exemplo, Clemencín anotou uma edição do livro e disse, claramente, que o autor era um relaxado, que não releu o que escreveu e nem sequer se deu a trabalho de verificar as contradições mais aparentes. Hoje em dia, a leitura de Don Quixote tem outro teor, e aquilo que os críticos anteriores encontraram como falhas, é visto como parte do que Cervantes se propôs ao escrever o livro, que era criticar e fazer graça com os romances de aventuras de cavaleiros andantes, os quais eram cheios de absurdos e incoerências. Como vemos nas primeiras páginas do livro de 1605, Cervantes começa com poemas louvando a vários personagens dos tais romances, cada um desde um ponto de vista. Um dos poemas mais engraçados é o que mostra um “diálogo” entre Babieca e Rocinante. Babieca era o cavalo de El Cid, o herói do poema épico espanhol mais conhecido. Rocinante, como sabemos, era o cavalo de Don Quijote. Este poema vale a pena citar:
B. ¿Cómo estáis, Rocinante, tan delgado?
R. Porque nunca se come, y se trabaja.
B. Pues, ¿qué es de la cebada y de la paja?
R. No me deja mi amo ni un bocado.
B. Andá, señor, que estáis muy mal criado,
Pues vuestra lengua de asno al amo ultraja.
R. Asno se es de la cuna a la mortaja.
¿Queréislo ver? Miraldo enamorado.
B. ¿Es necedad amar?
R. No es gran prudencia.
B. Metafísico estáis.
R. Es que no como.
B. Quejaos al escudero.
R. No es bastante.
¿Cómo me he de quejar en mi dolencia,
Si el amo y escudero o mayordomo
Son tan rocines como Rocinante? (Lathrop19)

B. Por que está, Rocinante, tão magro?
R. Por que nunca se come, e se trabalha.
B. Pois, que aconteceu com a cevada e a palha?
R. Meu amo não me deixa nem um bocado.
B. Cuidado, senhor, que está muito malcriado.
Porque sua língua de asno ultraja seu amo.
R. Quem é asno é asno do berço à mortalha.
Quer ver? Olha como ele está apaixonado.
B. Amar é estupidez?
R. Não é uma grande prudência.
B. O senhor está metafísico.
R.  É que eu não como.
B. Queixe-se ao escudeiro.
R. Não é suficiente.
Como vou me queixar de meus problemas,
Se o amo e escudeiro ou mordomo
São tão quatro patas como Rocinante?

VII
A história de Don Quixote é uma história cheia de mulheres. Ao que tudo indica, o fidalgo Don Quijana era um homem muito casto, que nunca tinha se casado. Não é ignorante dos prazeres do sexo, e reconhece muito bem seus perigos quando seu cavalo Rocinante se “interessa” demasiado por umas éguas e acaba sendo espancado pelos donos.
Em sua casa vivia sua sobrinha e uma ama, uma espécie de governanta. As duas cuidavam dele, e tinham grandes apreensões pelo que elas acreditavam serem as péssimas influências causadas pelos livros que ele lia. Foram as duas que deram permissão ao padre e ao barbeiro para emparedarem a biblioteca de Don Quixote enquanto ele jazia na cama, doente depois de um espancamento, ao voltar à casa pela primeira vez. A sobrinha e a ama foram as mais entusiasmadas em fazer o “auto da fé” dos livros de Don Quixote e queimá-los em uma fogueira no quintal. Se não fosse pelo barbeiro e o padre, todos os livros teriam sido queimados. Mas estas duas mulheres, guardiãs da saúde corporal de Don Quixote, ignorantes dos prazeres literários que ele obtinha em sua biblioteca, não são representativas das demais mulheres. Algumas delas são especialmente interessantes, grandes leitoras de histórias de cavalaria, e indicam não só o conhecimento que Cervantes tinha dos tipos humanos em seu tempo, mas também do que ele acreditava ser mais valioso nas mulheres.
Maritornes: era a empregada na primeira venda/hospedaria em que Don Quijote se hospeda, pensando que era um castelo. Tudo indica que, além de ser a empregada, Maritornes era uma espécie de prostituta, porque dorme com vários dos viajantes que vêm à venda. Mas, para Don Quixote, ela é uma alta e apreciada dama, que ele trata com mesuras e palavras escolhidas. Maritornes, embora seja uma pobre camponesa, véia, gorda, estrábica, trabalhando em regime semi-escravo para um vendeiro explorador, é a pessoa que comparte com Don Quixote e Sancho sua comida. Ela é, na verdade, uma grande e generosa dama, embora as aparências e as circunstâncias indiquem o contrário. Don Quixote é quem descobre, para a própria Maritornes, estas qualidades.
Marcela: moça de grande beleza, herdeira da fortuna de um tio, que deve o infortúnio de ser cobiçada por um jovem que se apaixonou perdidamente por ela e que não suportou sua rejeição. Este jovem, o pastor Grisóstomo, se suicida, e deixa uma narrativa em que acusa a Marcela da sua morte. Os amigos de Grisóstomo, jovens igualmente levados pelos ideais pastorais literários, querem puni-la. Mas, quando eles estão reunidos contando a Don Quixote como ela é má e destruidora, Marcela aparece e lhes faz um discurso em que prova que, por ser amada de Grisóstomo, ela não tem que ceder aos seus pedidos. Por ser mulher, não tem que necessariamente casar-se para buscar proteção. Ela afirma sua liberdade de ir e vir, desimpedida, e de cuidar de seus afazeres, de sua fazenda, sem ter que estar com um homem ao seu lado. Convém lembrar que esta história foi escrita em 1605. Em muitos lugares do mundo, ainda hoje, o que Cervantes diz, através de Marcela, ainda é uma lição a ser aprendida.
Aldonza Lorenzo/ Dulcinea del Toboso: Aldonza Lorenzo era uma camponesa. Dulcinea del Toboso uma grande dama. O que fez de uma a outra? O amor de Don Quixote. Logicamente, ele nunca a havia visto, e nunca a vê durante toda sua vida. Mas ele a ama. Ela representa aquele ideal de pureza e grandeza a que todos aspiram: ela era a musa inspiradora que a fé de Don Quixote alimentava. De tempos em tempos, algum crítico diz que ela representa a Virgem Maria.
Luscinda e Dorotea: Pode-se dizer que uma é a imagem refletida da outra. Luscinda é a jovem que é forçada pelos pais a casar-se com Don Fernando, um nobre. Ela tem que rejeitar o amor de sua vida, Cardenio. Dorotea é a jovem que foi abandonada pelo mesmo Don Fernando, depois de ter aceitado dormir com ele. Don Fernando abandona a jovem Dorotea, morena, negociante, independente, e quer se casar com Luscinda, que era loura e pura, dependente, chorona. Luscinda desmaia durante a cerimônia do casamento. Depois de várias peripécias, os dois casais se reencontram, e tudo é esclarecido, cada mulher fica com seu verdadeiro amor. Mas, enquanto este drama se desenvolve, vemos que Dorotea é uma mulher tão decidida como Marcela. E tem recursos e idéias que coloca em prática para conseguir o que deseja, casar-se com Don Fernando, ter a sua honra restabelecida. Mais uma vez, aqui vemos uma mulher que não fica esperando que o que deseja caia do céu. Mesmo Luscinda, com sua aparente passividade, recusa um matrimônio que beneficiaria sua família, e sai em busca do seu verdadeiro amor.
VIII
Neste ano, em que comemoramos os 400 anos de publicação desta grande obra, talvez muitos que não a leram ainda consiga encontrar um tempo para ler. Não é preciso que seja todo de uma vez. Pode ser uns dois ou três capítulos cada fim de semana. Mas eu sinceramente acho muito difícil ler-se só uns capítulos de cada vez.
Eu já tive a experiência de lecionar este romance várias vezes, para universitários, em espanhol. O princípio é sempre difícil, porque a língua espanhola mudou bastante desde 1605, e em geral nas primeiras páginas tenho que instruir aos alunos que abandonem o dicionário e tentem “entrar” na história. Isso leva mais ou menos umas 20 páginas iniciais. Depois, o difícil é segurá-los para que não leiam tudo de uma vez.
E a cada leitura, Don Quixote se revela um pouco mais. A cada leitura, o mundo da Espanha do século XVII se descortina, e nos deixa ver as relações humanas complicadas pela recente expulsão dos mouros, pela hostilidade contra os judeus, pela insistência de muitos personagens (inclusive Sancho Panza) de que são “cristãos velhos” (uma maneira de se distinguirem daqueles judeus que, com medo da Inquisição, se “converteram” ao cristianismo). Vemos a vida dos camponeses, suas dificuldades, suas relações com os senhores feudais, com a aristocracia decadente (como Don Quixote, e como o avô de Cervantes). Desta cultura – Portugal e Espanha sempre tiveram laços muito fortes – vieram os que nos colonizaram no Brasil.
Em cada leitura também vemos como as descrições são incrivelmente engraçadas, e como o livro critica praticamente todo mundo, desde os nobres aos religiosos, às pessoas convencidas da própria grandeza. A cada leitura, mas claramente se vêem os dois personagens principais nas suas grandezas e mesquinhezas, que os fazem tão humanos.
IX
Em minha universidade decidimos fazer uma série de comemorações para os 400 anos da publicação de Don Quixote. O clube de línguas estrangeiras promoveu uma “read-a-thon” do romance, que culminou com o sorteio de vários livros para os participantes. O departamento de artes, juntamente com o departamento de línguas, organizaram em março e abril um show de obras de arte inspiradas no romance, do qual participaram vários artistas do Sul do Texas com obras originais feitas especialmente para esta ocasião. Entre outros artefatos exigidos, tivemos também vários exemplares de Don Quixote datados do século XVIII. No outono, pensamos seguir as comemorações com palestras, apresentação de filmes.
Minha participação no show de arte consiste do quadro que ilustra este artigo. Trata-se de uma colagem, chamada “Lendo Picasso Lendo Don Quixote.” Muitas pessoas que vieram ver o show me perguntaram a razão de tal título e de tal forma. Para mim, porque conheço a obra razoavelmente bem, pensei inicialmente em escolher uma das muitas aventuras menos celebradas que a dos moinhos de vento, e fazer um quadro retratando a aventura. Mas, a cada tentativa de escolher um episódio que concentrasse vários aspectos do romance, sempre me vinha à memória um trabalho de Picasso, feito com tinta preta, a traços rápidos, mostrando Don Quixote, magro e alto, montado em Rocinante, conversando com o gordo Sancho Panza que vai montado em seu burrinho. Para mim, esta é a melhor representação de uma relação que se desenvolve durante a história, através dos longos diálogos entre os dois personagens através de suas aventuras pelos caminhos de La Mancha.
Como esta figura de Picasso continuava interpondo-se em outras que eu pensava formar, decidi usá-la, colocando-a como o pano de fundo para o que lhe deu vida, que é o texto, em espanhol, diretamente de Cervantes. Assim, esta é minha homenagem ao pintor cujas imagens sempre povoaram meu conhecimento de Don Quixote, e ao autor, Miguel de Cervantes, que nos deu o imortal Don Quixote de la Mancha. A obra de arte é aquela que sempre inspira muitas leituras, muitas interpretações. A julgar pela enorme quantidade de filmes, peças de teatro, pinturas, desenhos, instalações com o tema de Don Quixote, este é, indubitavelmente, um dos maiores romances – senão o maior – da nossa cultura ocidental
Temos algumas opções:
a) consideramos Don Quixote comemorado, e ponto final.
b) podemos parar as comemorações este ano, e retomá-las em 2015, quando comemoraremos os 400 anos da publicação da Segunda Parte.
c) podemos continuar comemorando daqui até o ano 2015.
d) podemos afinal ler o livro e saber por que Don Quixote é considerado o lançador do romance moderno, e um dos livros mais influentes na cultura ocidental.
Observação: Nem todas as opções são incompatíveis.
Vale*
Obras citadas
Cervantes, Miguel de. Don Quijote. Ed. Tom Lathrop. Newark, DE: Juan de la Cuesta-Hispanic Monographs, 2001.
Guía Museo Casa Natal de Cervantes. Comunidad de Madrid: Dirección General de Archivos, Museos y Bibliotecas, s.d.

* Vale: última palavra de Don Quixote. Ou seja: Adeus, em latin.
[Eva Paulino Bueno é paranaense de Cafeara. Morou em Maringá até 1975, e se graduou em Letras pela UEM (1975). Tem mestrado em Língua Inglesa pela UFRJ (1986), e Ph. D. em Hispanic Languages and Literatures pela Universidade de Pittsburgh (1991). Atualmente é professora de Espanhol e Português na St. Mary’s University, em San Antonio, Texas. É autora de vários livros e artigos sobre literatura brasileira, cultura popular, e estudos da mulher. Seu livro mais recente é uma enciclopédia, Latin American Women Writers, An Encyclopedia (Routledge]

Um comentário:

  1. Obrigada pela indicação da Leitura, recebi de um Poeta amigo. Esta Revista é excelente, parabéns, disse ao meu amigo: -informaçao pego gogleando, mas conhecimento virei buscar aqui-sempre.
    Sucesso!
    Roseane Braga-S.P.

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Obrigada pela Visita!
Boas Leituras.