Política.Literatura.Educação.A.Ozaí.W.Praxedes

Política, Literatura e Educação


 

Em que medida a literatura pode contribuir para a formação intelectual no campus? A obra literária tem significado pedagógico e político? O romance também se constitui em objeto da análise e reflexão política?

A prática docente indica respostas positivas às questões formuladas. Nas disciplinas em que atuamos, utilizamos obras literárias enquanto objeto de apoio para análise ou contextualização política e sociológica. Enquanto recurso didático-pedagógico, os resultados têm sido animadores. Contudo, a adoção da literatura neste contexto deve-se muito mais à intuição e iniciativas influenciadas por educadores críticos e libertários.

Partimos do pressuposto de que a obra literária possui significado político-pedagógico e contribui para elucidar a realidade social na qual tanto educadores quanto educando se encontram inseridos. Adotamos a hipótese de que a prática docente é algo que se encontra em construção permanente, tanto no que diz respeito ao aprofundamento dos conteúdos quanto aos aspectos relacionados à atuação direta com os discentes.

A literatura pode se constituir em fator de aperfeiçoamento educativo. Trata-se de saber quais as obras que melhor cumprem este papel e permitem um vínculo direto entre literatura e a atuação docente. Isto pressupõe a leitura e a análise política-sociológica das obras literárias, permitindo ao docente orientar e dialogar com os discentes sobre as mesmas e o seu significado para as disciplinas, a formação acadêmica e a vida. Dessa forma, nos propomos a identificar, ler e refletir sobre as obras literárias capazes de cumprir este objetivo, e também a bibliografia sobre as mesmas. É este o nosso foco.

Significado político-pedagógico da literatura


As obras literárias apresentam um significado educativo, ou seja, pedagógico e político. Os estudos universitários sobre os fenômenos educativos não necessariamente devem incidir sobre as concepções científicas e filosóficas ou mesmo sobre a prática pedagógica. Um significado educativo pode estar presente em uma obra de arte como uma pintura, uma poesia, uma música, uma peça teatral ou um romance. Como manifestação artística, o romance compõe o espaço público no mundo moderno e ao lado de inúmeras outras modalidades de comunicação intersubjetiva contribui também para a reflexão e para a formação de opinião. Como gênero literário um significado que pode ser-lhe atribuído é o de meio de “elucidação pedagógica” para a tematização pública das representações e das práticas, presentes ou pretéritas, que bloqueiam ou viabilizam a emancipação humana.[1]

Tanto educadores quanto educandos estão inseridos numa realidade mais abrangente do que a sala de aula. Ao adentrarem no campus trazem inscritos em sua subjetividade experiências e saberes incorporados que influem sobre o processo de ensino-aprendizagem. São indivíduos singulares, inseridos na vida em sociedade; influenciados por esta, mas que também podem influenciá-la, tanto no seu projeto como na sua ação política. Portanto, não são apenas ‘indivíduos’ isolados em ilhas de interesses egoístas, mas sim ‘sujeitos’ que precisam se preparar política e culturalmente. Na medida em que vivem em sociedade, são detentores de direitos políticos e sociais e também de deveres perante esta e os seus semelhantes. Seus valores e formação educacional podem influir positiva ou negativamente.

A literatura favorece a elucidação sobre os valores e práticas que potencializam e/ou dificultam a emancipação humana. Por outro lado, a análise política das obras literárias permite desvendar tais representações e contribui para uma reflexão crítica sobre estas, a política e a sociedade. Como conhecimento dotado de um potencial de incentivo à reflexão, a obra literária pode formular enunciações que atuam sobre as representações dos sujeitos individuais e coletivos, modificando-as, e, assim, manifestando seu caráter pedagógico.

A formação intelectual, em seu sentido mais amplo e profundo, não se limita à transmissão e recepção de conteúdos. Assim, é necessário romper com o método pedagógico centrado na memorização e na esperança do prêmio e/ou no desespero das punições. No lugar da “educação bancária”, na qual o discente é apenas o receptor passivo e objeto do saber professoral, é necessário pensar no educando enquanto agente de sua própria formação cultural, fortalecendo a sua autonomia, com a liberdade e a responsabilidade inerente a esta. A educação nesta perspectiva política-pedagógica prioriza o diálogo entre educador e educando, e procura desenvolver condições e procedimentos que favoreça este diálogo e contribuam para a reflexão crítica.

Mais do que memorizar conteúdos, é necessário refletir sobre estes, o que eles representam e/ou ocultam, sua influência e relação com a realidade social. A pedagogia assume, portanto, um caráter político. “Político” não no sentido de adesão a esta ou àquela posição política, ou a este ou àquele partido político. Nem, muito menos, à postura doutrinária e dogmática do professor, o qual, conscientemente ou não, abusa da autoridade que é investido pela instituição para fazer proselitismo. Político, no sentido de que o saber, dito científico e acadêmico, não é neutro. Também é ilusória a suposta neutralidade do educador e educando diante do mundo. O educador está no mundo e sua palavra, comportamento pedagógico e postura individual diante do saber e dos educandos, constituem ações de caráter político. A palavra “político” tem, aqui, um sentido amplo e se relaciona às posturas que podem contribuir para a emancipação humana ou à conservação do status quo.

A formação do educando, nesta perspectiva dialógica e crítica, também incide sobre o educador, na medida em que o diálogo vincula a ambos no processo formativo. Tanto a ignorância quanto o conhecimento de ambos são relativos. Se o educador tem algo a ensinar ao educando, seu saber não é absoluto. O educador, aprende no próprio processo de ensinar e na relação com o educando. A vinculação é do educador em relação ao educando e vice-versa. O diálogo estabelecido é mediado pelo conteúdo e pelos procedimentos pedagógicos, que também têm caráter político.

A literatura representa um possível agir político-pedagógico que contribui para a compreensão dos conteúdos e para a formação humanista e crítica do educador-educando. O recurso à literatura, enquanto procedimento político-pedagógico, leva-os a superarem os estreitos limites da disciplina, isto é, dos conteúdos determinados a priori e consagrados na grade curricular.

A literatura estimula a imaginação e alarga os horizontes do conhecimento do sujeito que demanda compromisso com a cultura universal. E, na medida em que é utilizada na relação direta com os conteúdos disciplinares, permite a reflexão crítica e a maior compreensão destes. Compreender o significado político-pedagógico da obra literária é a principal condição para discernir as possibilidades que a literatura oferece à formação acadêmica e humanista, seja qual for a área de conhecimento.

Como ressalta Antonio Candido, a literatura expressa uma necessidade universal e um direito dos indivíduos em qualquer sociedade. A literatura é fundamental ao processo de humanização que confirme “no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso de beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor...” (CANDIDO, 1986, p. 117). A literatura tem a potencialidade de nos tornar melhores e de permitir uma maior reflexão sobre a cidadania em seu conteúdo político e social, contribuindo para a formação intelectual e cultural.

Como analisar os aspectos políticos e pedagógicos da obra literária?

Em primeiro lugar, adotamos o pressuposto teórico de que o contexto histórico e a sociedade de cada época influenciam o autor e a sociedade é influenciada pela obra que ele produz. Como define Antonio Candido:


“A literatura é, pois, um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. a obra não é um produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um sobre o outro, e aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de circulação literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo” (CANDIDO, 2000, p. 68)

Os indivíduos são influenciados pelas obras que lêem e influenciam a sociedade a partir das leituras e interpretações que fazem. Esta interinfluência ocorre porque o autor, sua obra e os leitores não se encontram isolados, mas em sociedade. Os autores e seus leitores são ontologicamente determinados. Essa compreensão passa por uma definição de literatura que não toma a obra literária em si, nem como mero reflexo da estrutura social, mas a considera numa relação dialética. Novamente, recorremos a Antonio Candido:


“Com efeito, entendemos por literatura, neste contexto, fatos eminentemente associativos; obras e atitudes que exprimem certas relações dos homens entre si, e que, tomadas em seu conjunto, representam uma socialização dos seus impulsos íntimos. Toda obra é pessoal, única e insubstituível, na medida em que brota de uma confidência, um esforço de pensamento, um assumo de intuição, tornando-se “expressão”. A literatura, porém, é coletiva, na medida em que requer uma certa comunhão de meios expressivos (a palavra, a imagem), e mobiliza afinidades profundas que congregam os homens de um lugar e de um momento – para chegar a uma “comunicação” (Id., p. 127).

Há o diálogo entre o leitor e a obra; esta se concretiza em sua leitura. E como são inúmeros os leitores, serão várias as interpretações e as maneiras de apreender subjetivamente os sentidos e valores axiológicos contidos na obra. Daí porque uma determinada obra sem qualquer objetivo político enunciado pode se transformar em uma obra política. Aliás, o romance declaradamente político não é necessariamente boa literatura e corre o risco de se restringir ao panfletarismo. “Romancistas comprometidos com temas políticos não têm necessariamente que chegar a conclusões políticas: em geral é melhor que não tentem fazê-lo”, notou HOWE (1998, p. 197).[2]

A autonomia da literatura não é absoluta. A arte pela arte desconsidera o contexto; e, por sua vez, a redução desta a mero reflexo da infraestrutura não resolve o problema. Da mesma forma que uma obra literária de cunho político não é esteticamente de qualidade pelo simples fato de expressar uma mensagem política, outra obra de reconhecível qualidade estética, para ser analisada deve ser levada em conta o contexto social. A compreensão do meio social sob o qual vive o autor e/ou a sua obra é lida, é fundamental. Sartre analisou este aspecto e nos fornece o exemplo de Richard Wright, negro norte-americano:


“A quem, pois, se dirige Richard Wright? Não ao homem universal, decerto, pois na noção de homem universal entre a característica essencial de que ele não está engajado em nenhuma época em particular e de que não se comove nem mais, nem menos, com a sorte dos negros da Luisiana do que com a dos escravos romanos do tempo de Espártaco. O homem universal não seria capaz de pensar outra coisa senão os valores universais; ele é a afirmação pura e abstrata dos direitos imprescritíveis do homem. Mas Wright não pode, tampouco, pensar em destinar seus livros aos racistas brancos bancos da Virginia ou da Carolina, que têm idéias preconcebidas, e que jamais os abrirão. Nem aos camponeses negros dos alagadiços, que não sabem ler. E ainda que ele se mostre feliz com a acolhida que a Europa concede aos seus livros, é evidente que ao escrevê-los não pensa no público europeu. A Europa está longe, as indignações européias são ineficazes e hipócritas. Não se pode esperar muito de nações que subjugaram a Índia,a Indochina, a África negra. Bastam estas considerações para definir os seus leitores: ele se dirige aos negros cultos do Norte e aos americanos brancos de boa vontade (intelectuais, democratas de esquerda, radicais, operários filiados a sindicatos progressistas)” (SARTRE, 1993, p. 63).

Todo autor tem o seu público, e este não é o homem universal em abstrato. Mesmo em tempos de Internet escrevemos a partir de determinados objetivos, e para sermos lidos. Essa expectativa sempre está em aberto pois não podemos identificar os nossos leitores e o uso a ser feito do que escrevemos. Mas, se temos uma escrita comprometida – engajada, diria Sartre – é possível imaginá-los. Eis o nosso público possível, aquele com o qual nos identificamos: “Para Wright, os leitores negros representam a subjetividade. A mesma infância, as mesmas dificuldades, os mesmos complexos: meia palavra basta, eles compreendem com o coração. Tentando esclarecer a sua situação pessoal, leva-os a se esclarecerem sobre si mesmos”. Ao se identificar com o seu público, o autor expressa a realidade deste em sua obra. “O escritor é a consciência deles”, afirma Sartre (Id, p.64).

Consideremos, portanto, não apenas a obra do autor, mas também o contexto social e histórico no qual ele e a obra se inserem, bem como os seus potenciais leitores. Também devemos levar em conta que mesmo uma obra literária com aspectos políticos não se reduz a estes. A análise política de um texto é apenas uma das possíveis. Há também aspectos sociológicos, psicológicos, religiosos, culturais, lingüísticos etc., que são tão importantes quanto aqueles e enriquecem a leitura e a análise. Estes aspectos se entrelaçam e enriquecem a interpretação da obra literária na perspectiva política pedagógica.

Em segundo lugar, nos apoiamos no pensamento de Lucien Goldmann, para quem existe “...na história da cultura ocidental, uma relação de homologia, assaz estrita, entre as grandes correntes filosóficas e as grandes criações literárias” (GOLDMANN, 1972, P. 33). Segundo este autor, através do romance realiza-se “...a transposição para o plano literário da vida cotidiana na sociedade individualista nascida da produção para o mercado. Existe uma homologia rigorosa entre forma literária do romance, tal qual acabamos por definir, e a relação cotidiana dos homens com os bens em geral; e, por extensão, dos homens com outros homens, numa sociedade produtora para o mercado” (GOLDMANN, 1967, p. 16). A homologia entre o texto literário, pensamento social e realidade é uma hipótese metodológica que, a nosso ver, contribui para a análise política-pedagógica da obra literária. A literatura em geral, e o romance político, em particular, podem expressar um conteúdo homólogo ao da realidade social.

Nessa direção, Henri Lefebvre representa outra importante contribuição. Para ele, a obra é o resultado de um processo de totalização, ou, em suas palavras, de um processo de “restituição do global”. Para que se constitua como “obra”, segundo Lefebvre, uma manifestação humana deve partir de uma necessidade vivenciada e resultará em um conhecimento teórico combinado com habilidades técnicas. Em seu processo de constituição tanto as atividades teóricas quanto as atividades técnicas ocorrerão de forma séria e lúcida ao mesmo tempo, e se efetivarão graças a uma vontade do sujeito, vontade esta que se faz ação prática.

A obra literária é o resultado da conjunção do individual com o coletivo, fruto de relações sociais, mesmos que sejam os sujeitos individuais que se esforcem na sua elaboração, tendo em vista a sua realização humano-genérica. Quando Lefebvre se refere a “restituição do global” ele pretende desvelar o fato de que a obra é o resultado de vários momentos combinados dialeticamente e que envolvem o contexto histórico, habilidades técnicas, satisfação lúdica dos indivíduos e as relações sociais das quais resulta a obra.

A concepção de Lefebvre sobre a obra literária abrange, assim, uma totalidade que emerge da superação do singular, fonte inicial da vivência, e pretende também a superação da universalidade desligada da vivência enquanto prática individual e social. Tomando o romance como exemplo, o romancista capta na vivência e não na teoria o motivo da sua obra. As representações do autor se mantêm presas à singularidade, por isso a criação da obra ocorre quando as representações são superadas pelo conhecimento que situa a singularidade em relação ao universal. Em síntese, as obras literárias não são simples objetos, mas as cidades, os projetos arquitetônicos e espaciais, as instituições, as manifestações estéticas, a vida coletiva, que se apresentam condensados em objetos criados pelos humanos cuja aparência veja o sei conteúdo essencial: as relações sociais que os constituíram.

Em suma, na medida em que a obra literária expressa um significado político pedagógico, sua leitura e análise podem se constituir em importante contribuição à elucidação da realidade sócio-política. O uso da literatura também se revela um recurso pedagógico, sociológico e político fundamental. A literatura, enfim, pode contribuir para a formação intelectual dos educadores e educandos, numa perspectiva que supere o conteúdismo, o ensino decoreba e a “educação bancária”.

 
ANTONIO OZAÍ DA SILVA
Docente na Universidade Estadual de Maringá (UEM) e Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP)

 WALTER PRAXEDES
Docente na Universidade Estadual de Maringá e Faculdades Nobel; Doutor em Educação pela USP e co-autor de O Mercosul e a sociedade global (São Paulo, Ática, 1998) e Dom Hélder Câmara: Entre o poder e a profecia, publicada no Brasil pela Editora Ática (1997) e na Itália pela Editrice Queriniana (1999)



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