C.Científico...ModeloGeométrico...Marco.A.Franciotti

Conhecimento Científico Segue Modelo Geométrico

Marco Antonio Franciotti
O método dos geômetras, usado por Euclides como chave para a solução de problemas geométricos em sua obra "Elementos" tem sido reconhecido por séculos como modelo metodológico indispensável para a prática não apenas da matemática, mas também da lógica formal, da filosofia e das ciências naturais. Pensadores de diferentes domínios do saber nele se inspiraram para formular suas doutrinas. Hoje em dia, vários estudiosos, dentre os quais Jaakko Hintikka e Georg Polya, procuram resgatar sua importância histórica, sua eficácia, seu alcance, a legitimidade de seus resultados e sua força heurística. Todos esses problemas constituem parte significativa das reflexões filosóficas contemporâneas, em especial nas discussões sobre a prática do cientista e sobre o estatuto cognitivo das teorias científicas, isto é, nas discussões realizadas no âmbito da filosofia da ciência.
Em "A Arte do Resolver Problemas", Polya usa o termo "heurística" para denominar a investigação dos métodos e regras da descoberta e da invenção. Entre as fontes a que se recorre para o estudo da heurística, Georg Polya se refere a uma obra fundamental intitulada "Collectio", do matemático grego Pappus (320 d.C.). Isso porque, nela, Pappus descreve em detalhes o método analítico dos antigos geômetras gregos na demonstração de teoremas ou na construção de figuras geométricas. Esse procedimento consistia em um duplo movimento: análise, na qual se buscavam os antecedentes das proposições a serem provadas ou as condições que tornassem possíveis a construção de figuras geométricas, e a síntese, na qual, a partir das condições descobertas na análise, apresentava-se ou a prova do teorema na seqüência lógica usual ou a construção efetiva da figura geométrica. A análise se subdividia em transformação (busca das condições para a solução do problema) e resolução (legitimação das condições descobertas). A síntese se subdividia, por sua vez, em construção (dos dados do problema) e prova.
(busca das condições para a solução do problema) e resolução (legitimação das condições descobertas). A síntese se subdividia, por sua vez, em construção (dos dados do problema) e prova.
Polya fornece vários exemplos de aplicação desse método. Um caso interessante e bem simples de solução de um problema não-matemático é o de um homem primitivo que deseja passar de uma margem a outra de um rio cuja profundidade não permite uma travessia a pé. Diante desse problema, ele pode lembrar-se de já ter atravessado outro rio sobre uma árvore caída. A busca de uma árvore torna-se então a nova incógnita. Como não existe no local nenhuma árvore caída, ele se depara com um novo problema, que consiste em saber que meios empregar para derrubar uma das árvores do local sobre o rio.
Essa seqüência de idéias caracteriza aquilo que Pappus chamou de análise. Se o homem conseguir concluir a análise, então ele poderá caminhar pela árvore sobre o rio e chegar à outra margem, resolvendo seu problema. Esta última etapa corresponde ao que Pappus denominou síntese. A análise é a invenção e a síntese, a execução. A análise consiste em conceber um plano e a síntese, em concretizá-lo.
É marcante a influência do método dos geômetras na gênese e no desenvolvimento do pensamento moderno. Descartes, por exemplo, toma o método dos geômetras como fundamento para as suas considerações metodológicas gerais. Respondendo a uma das críticas às suas "Meditações" ,"dividir cada uma das dificuldades a serem examinadas em tantas parcelas quantas possíveis e necessárias para melhor resolvê-las. Tal preceito sugere uma trajetória metodológica que vai do composto ao simples, correspondendo à análise, ou primeiro movimento do método dos geômetras. Realizada essa tarefa, o terceiro preceito ordena conduzir por ordem os pensamentos e caminhar em direção ao conhecimento dos mais compostos. Esse preceito corresponde à síntese, pois ordena que se inicie das partes constitutivas descobertas na análise, para, só então, dirigir-se ao composto que resulta das conexões dessas partes. assinala que a obra foi elaborada em obediência ao primeiro movimento do método dos geômetras, de acordo com o qual se mostra "o verdadeiro caminho pelo qual uma coisa foi metodicamente descoberta e revela como os efeitos dependem de suas causas" . No "Discurso do Método", Descartes chega a usar uma linguagem geométrica quando enumera os quatro preceitos básicos de sua metodologia. O segundo desses preceitos ordena
Além de Descartes, também Newton foi influenciado pelo método analítico. Em seu livro "Óptica", ele afirma que a ciência natural deve seguir o método da geometria, pois este é "o melhor método para investigar a natureza das coisas" . Por meio da análise, "podemos proceder dos compostos aos ingredientes, dos movimentos às forças que os produzem e, em geral, dos efeitos até as suas causas" . E a síntese consiste em assumir "as causas descobertas e estabelecidas como princípios para, a partir delas, explicar os fenômenos que procedem de tais princípios ou causas e provar as explicações" .
Newton é enfático ao associar seu método de investigação da natureza à análise geométrica grega. Para ele, o estudo das inter-relações físicas de um experimento é regido pelo procedimento heurístico detectado no estudo das inter-relações das partes de uma figura na antiga geometria grega. Em outras palavras, Newton procurava investigar uma certa situação experimental do mesmo modo que os geômetras gregos investigavam uma figura no sentido de descobrir conexões entre as suas partes.
O ponto de partida metodológico da investigação natural é o experimento e a observação empírica. A partir daí, buscam-se elementos que possam constituir um modelo satisfatório de explicação dos fenômenos. Esse procedimento analítico é sucedido por um encadeamento dedutivo que se inicia em algum princípio ou postulado (reconhecidamente certo e verdadeiro) descoberto na análise e culmina nas conclusões sobre ocorrências empíricas que procedem de tais princípios.
O filósofo alemão Immanuel Kant declara-se um seguidor do método geométrico quando, numa passagem dos "Prolegômenos", diz que em tal obra utilizou a análise ou o método de descoberta, pois nela se adotou um procedimento que vai do problema inicial às condições para a sua solução. Na "Crítica da Razão Pura" , sua principal obra, foi utilizada a síntese ou o método de explicação, pois nela Kant procede da própria razão e de seus elementos constituintes até a exposição do sistema transcendental.
Uma das mais férteis interpretações do pensamento kantiano foi sugerida recentemente pelo filósofo finlandês Jaako Hintikka. Para ele, o sistema transcendental pode ser reinterpretado com base no método dos geômetras. Com isso em mente, muitos aspectos do pensamento kantiano podem ser mais claramente compreendidos. A dedução transcendental das categorias - considerada por muitos filósofos uma das passagens mais intrincadas da história da filosofia - corresponderia à parte resolutiva do pensamento kantiano, na qual se procuram legitimar os elementos descobertos na transformação. Kant realmente pretende em tal dedução demonstrar que as categorias são condições legítimas de possibilidade dos juízos sintéticos a priori.
O papel desempenhado pelo método dos geômetras no pensamento newtoniano dá uma indicação de sua importância para as ciências naturais. Desse modo, muitas das discussões em torno do alcance, correção, eficácia, e legitimidade das teorias científicas não podem deixar de enfocar a natureza do método dos geômetras.
Um tema de muita polêmica nessa área do conhecimento filosófico, que pode servir para ilustrar a presença do método dos geômetras como pano de fundo metodológico, é a discussão sobre contexto de descoberta (que corresponderia à primeira metade do método dos geômetras) e contexto de justificação (que corresponderia à segunda metade) das teorias científicas. Em qualquer análise filosófica das ciências naturais, a questão mais imediata que surge é a seguinte: "Será que os procedimentos intelectuais que os cientistas realmente empregam para investigar e explicar os fenômenos naturais têm méritos intelectuais definidos que tornam sua adoção racionalmente prudente, sábia e obrigatória?" Ao responder a essa questão, a opinião dos filósofos tendeu, de início, a polarizar-se em dois extremos: de um lado, um ponto de vista positivista e formalista, e, de outro, um romântico e irracionalista.
Devido a sua inspiração matemática, os empiristas vienenses interpretaram, no início deste século, a racionalidade dos procedimentos científicos como dependentes apenas da validade formal dos argumentos científicos. Na visão deles, as questões de racionalidade só podem ser levantadas sobre o trabalho do cientista no estágio final de sua investigação, isto é, quando ele estabelece os argumentos explicativos que dão suporte a suas teorias. Apenas aí haverá algo sobre a ciência que é passível de ser criticado em termos lógicos ou filosóficos. Todas as questões sobre os estágios anteriores à justificação - isto é, sobre a descoberta - são questões de mera psicologia, não de filosofia séria. Há, portanto, uma separação entre o contexto de descoberta e o contexto de justificação das teorias científicas.
No extremo oposto, pode-se considerar o ponto de vista de Arthur Koestler, para quem o cientista moderno é um sonâmbulo cujas visões criativas o levam a destinações intelectuais que jamais poderia claramente ver ou afirmar de antemão. A preocupação excessiva com a racionalidade dos procedimentos científicos teria surgido de um desejo de segurar as asas da imaginação e de submeter o cientista a procedimentos que destroem a fertilidade criativa da ciência, constituída de intuição, adivinhação e acaso. Essa visão também apresenta como conseqüência a separação entre a descoberta e a justificação.
Muito recentemente, filósofos da ciência têm procurado relativizar essa separação. O mais importante deles é Thomas Kuhn, para quem a ciência, tal como é entendida tradicionalmente, nada mais é do que a ciência normal. Esta se define como a pesquisa baseada em uma ou mais realizações científicas passadas. Tais realizações permanecem incontestadas durante algum tempo na comunidade científica. A ciência normal é regida por um paradigma, isto é, por uma rede de compromissos ou pressupostos conceituais compartilhada pelos cientistas. Todavia, ela pode enfrentar, num determinado momento histórico, uma crise provocada pelo freqüente aparecimento de anomalias, ocorrências que não se ajustam às convenções preestabelecidas. Tal crise desencadeia uma revolução científica.
Nesse momento em especial, ocorre uma disputa entre paradigmas, até que um deles suplante os demais, acarretando assim uma alteração de toda a rede de ligação entre fatos e modelos científicos. Na escolha de um paradigma, a força da lógica não pode ser o único critério. Nessas decisões, a comunidade de cientistas treinados constitui a última instância de apelação. Isso quer dizer que a luta entre paradigmas envolve não apenas recursos lógicos ou apelos à experiência, mas também uma certa capacidade de persuasão para conseguir uma verdadeira conversão dos outros cientistas ao novo paradigma.

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