sábado, setembro 04, 2010


 Nossa Homenagem a MADALENA FÉRIN


Madalena Férin (1929-2010)


 Diz Maria Estela Guedes:
Madalena Férin, dos mais antigos colaboradores do TriploV, nossa amiga além de colega das Letras e do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa - CICTSUL, morreu ontem, dia 3 de Setembro de 2010, em Lisboa. O seu caso clínico (alguns anos na sujeição da doença de Alzheimer) continuará a ser estudado pela ciência. A boa Madalena até depois de morta continua a ser generosa connosco.

Madalena Férin é uma escritora de grande talento, com vários romances publicados, e sobretudo livros de poemas lindíssimos. No TriploV há escassa colaboração dela, porque infelizmente o site tem a idade da doença que incapacitou a autora. Em todo o caso, encontra em linha excertos dos seus últimos livros, «Um escorpião coroado de açucenas», poesia, e um capítulo do romance «África Annes». Duas conferências minhas, em homenagens de açorianos à sua conterrânea, uma na Casa dos Açores, em Lisboa, e outra na instituição homóloga de Faro, também estão em linha, para quem quiser recordar ou conhecer esta muito original mulher das Letras portuguesas.

Em nome pessoal, do TriploV e do CICTSUL, cumpre-me difundir a notícia e apresentar aos filhos, irmãos e mais família, as nossas condolências.

Maria Estela Guedes
TriploV - CICTSUL
Britiande, 4 de Setembro de 2010

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  ACERCA DE ÁFRICA

    E DOS ESTRANHOS PEIXES

IN: MADALENA FÉRIN


ÁFRICA ANNES


Edições Salamandra

Lisboa, 2001

Publicação patrocinada pela Direcção Regional da Cultura, Açores

 Sobre a criança que nascera em tão dificultosas circunstâncias, parece que não impendia a sorte de seus irmãos. África, alimentada pela burra e embalada nos ternos braços de Luzia, ganhava saúde e beleza e já ultrapassara os meses que tinham sido fatais para os outros meninos, seus irmãos.

Seu pai ia visitá-la quase todas as tardes, antes do toque das trindades, ao anoitecer, e olhava-a com alguma ternura.

Passava as pontas dos dedos nos seus negros cabelinhos, e as muito velhas mulheres que residiam no paço, quando viam o capitão do donatário olhar a menina, ficavam muito espantadas por não ser costume um tão grande Senhor olhar assim sua filha.

Também Fernão Gonçalves, amo de Antão Annes, chamado da Barba porque a tinha muito comprida, dizia que nunca o pai dele o havia olhado deste modo porque não era hábito os poderosos senhores perderem seu tempo a visitar crianças.

Quando começou a idade de lhe nascer os dentes, deram-lhe para roer a vértebra de um peixe que não era baleia, encontrado no pesqueiro do Demo, assim chamado por ser ruim e trabalhoso. Esse peixe não tinha osso nem espinha, enorme de quarenta e dois côvados em comprimento e oito de largo, de quinze palmos de alto e da ponta da boca até à guelra tinha vinte e cinco palmos; e que, o vendo, alguns homens disseram que se se abrira a boca, bem pudera caber e entrar por ela uma junta de bois com seu carro.

E o amarraram e andaram cem homens subindo por ele como sobem pelas cintas de um navio, e no dia seguinte, cento e cinquenta, e todos o cortaram com machados. Deitou pela ilharga tanto azeite claro que encheu duas ou três pipas e este azeite logo coalhava entrando na água e peneirando-o ficava branco como manteiga.

Derreteram-no em fogueiras que fizeram sobre a areia e aproveitaram-no para a candeia. Depois viram que era também bom para mezinha de sarna e caganeira de bois e para frialdade untando-se com ele.

Todo derretido o peixe, viram que não tinha osso nem espinha como atrás disse, mas os nervos eram de tal modo rijos que podiam prender com eles as reses ou outras bestas à relva e que tinham a maior resistência sem nunca se quebrarem.

Pois foi um pequeno pedaço destes nervos, parecendo âmbar, que puseram nas mãozinhas de África e com o qual ela coçava suas gengivas rosadas.

Tempos depois encontraram outro peixe morto, de estranha grandura, mas derretido não se tirou grande proveito por se gastar mais lenha para o queimar do que o que valia em azeite. Mas alumiava mais claro do que o de baleia quando ardia e não saía nenhum cheiro.

Era tão grande e espantoso com suas barbatanas no redor da cabeça como tábuas de forro e com cabelos como de seda nas pontas, parecendo um resplendor. Este peixe dizem que é grande guerreiro e furioso na peleja.

Também quiseram dar um pedacito dele a África para coçar suas gengivas, mas a menina assustou-se tanto que gritou durante três dias.

Parecia que já o tivesse alguma vez olhado em seu meio, natural, que era o profundo abismo do mar.

E isto tudo que a menina fazia era causa de espanto.

Por todos estes sinais, e porque África tinha um brilho desusado no olhar e devido ao seu nascimento que ocorreu no próprio momento do terramoto, como Petronilla Afonso jurava, pondo a mão sobre a Bíblia, havia quem acreditasse que ela estaria predestinada a grandes feitos.

[CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDO]
Fonte:http://www.triplov.com/ferin/africa_annes.html


A Poesia de Madalena Férin:
29.5.06

Seis lâminas de navalha
o altar portátil
os dragões perfilados
gravada a cruz na pele
brancas perversas mudas
dançando sempre em roda
do vestido fizemos as paredes

Lisboa, 1992

 Meditar com Madalena Férin (2)
 
“no corredor dos dias
todas as portas abrem
para o tempo de partir
e esta angústia não chega
às margens do meu corpo
porque existe uma pedra
na nascente de mim”
Madalena Férin


Madalena Férin nasceu nos Açores, ilha de S. Miguel, a 22 de Julho de 1929. Estreou-se em 1957 com a colectânea Poemas, à qual foi atribuído o Prémio Antero de Quental. Entre 1965 e 1975, residiu em Faro. Após o interregno de mais de 25 anos, voltou a publicar com Meia-Noite no Mar (1984), A Cidade Vegetal (1987) e O Anjo Fálico (1990). Licenciada em Filosofia, é autora de livros de ficção e de poesia, tendo vários trabalhos ensaísticos publicados nas revistas Ocidente e Revista de Portugal. Possui ainda trabalho enquanto tradutora e está representada em algumas antologias.

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Alzheimer




nos fios do silêncio teus olhos tecem distâncias escuras
tuas mãos lentas tateiam caminhos de plenitudes nuas
nas agulhas do adeus vagas por lembranças só tuas


e da vida ...
essa continuidade de cal e pedra eterna
sem chão, sem marcas, sem margens, sem pegadas
onde tudo se esgarça
teu rosto é denúncia calada

e enterneces minha pressa de chegar
em rasgos fecundos

lacro a palavra sem vigília dentro da dor
onde o vazio não se afoga nunca 
[por anamerij]

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